No Porto há uma rua urbana com jeitinho de aldeia

A Rua do Bonjardim está no centro da cidade, mas passa despercebida entre dois quarteirões que são colossos da Invicta. Todavia, merece ser mais apreciada pela sua graça e vivacidade, pelas histórias que guarda, pelos sabores que oferece e pelas pessoas que nela vivem.

Dolores Soares trabalha no mesmo prédio onde, antes dela, trabalhou o pai e o avô e os pais, e os avós deles também. Esta família de douradores, artesãos de molduras e restauro de móveis está há 159 anos no mesmo prédio triangular que parece levar a Travessa das Liceiras para dentro da Rua do Bonjardim. A Santos & Irmão é uma loja-oficina singular, delicada, a parecer cenário de um filme. Os seus artesãos podem gabar-se de ter assistido, no seu quotidiano, a muitas grandes mudanças da Baixa do Porto, que foram sucedendo desde os tempos em que aquele aquele lugar marcava a transição da cidade dentro da muralha fernandina para os arrabaldes. É essa também a história da Rua do Bonjardim, que nasceu quando uma enorme quinta deu lugar ao crescimento urbano.

No final da Idade Média, contudo, o que ali havia era um postigo que, por ordem de D. Manuel I, foi ampliado e passou a ser uma passagem conhecida por Porta de Carros. Dali, passava-se do burgo para um caminho de campos de cultivo, lameiros, olivais e laranjais – uma autêntica aldeia que iniciava a estrada para Braga e Guimarães. Era assim um caminho camponês até à atual Praça do Marquês, que nessa época era um campo ao qual se chamava Largo da Aguardente, o que poderá dever-se à existência de um alambique naquelas bandas ou então de um mercado forte nesta bebida. Aliás, não foi assim há tanto tempo que o Porto era uma sucessão de quintas, que se estendiam até onde é hoje a Avenida dos Aliados.

Foi assim até meados do século XVIII, quando o advento do liberalismo inspirou planos de urbanização que abriram ruas, criaram quarteirões e começaram a fazer a cidade aquilo que ela é hoje. Foi assim que do Terreiro da Erva (onde se vendia erva e palha) nasceu a Praça da Trindade; que da aldeia de Liceiras resta a pequena travessa com o mesmo nome (onde se estabeleceram os irmãos douradores); e que da Quinta do Bonjardim se abriu esta rua que hoje é tão peculiar. Vamos abreviar essa história, com a ajuda do jornalista e historiador da cidade Germano Silva: a nova rua nasceu de um negócio entre o fidalgo da Quinta de Santo António do Bonjardim, de nome Cristóvão Teixeira Coelho de Melo Pinto de Mesquita, e a Câmara Municipal. Era uma propriedade enorme que ia desde a Trindade à zona onde é agora a Rua do Paraíso, estendendo-se até à atual Praça da República.

O Bonjardim mantém marcas do seu passado rural. É uma rua com cara de aldeia

Em 1838, Cristóvão quis urbanizar esse seu território e sugeriu ao município ceder-lhe terreno para abrir ruas, na condição de uma delas levar o seu nome. Dessa troca, nasceram ruas como João das Regras, Gonçalo Cristóvão e Camões. Poucos anos depois, os irmãos Santos abriam a sua oficina de molduras. E novas lojas, negócios, casas de comer e beber foram abrindo. Hoje, o Bonjardim mantém marcas desse passado rural, principalmente na sua parte norte, entre o Largo de Tito Fontes e o Marquês. É uma rua com cara de aldeia, cujas costas de hortas e pomares se avistam nas traseiras de algumas ruínas e nas costas da fonte de Villa Parda, que foi um chafariz essencial naquela zona da cidade, construída em 1859 e restaurada em 1940.

Cruza-se com o Largo de Tito Fontes, que depois de tempos menos felizes se tem recheado de negócios e os seus prédios surgem cada vez mais de cara lavada. Tem-se enchido de nova vida e até de histórias de amor, com a de Susana, que tomou conta da mercearia da esquina, e de Ricardo, que toca com a família a movimentada padaria Giramassa. Conheceram-se no Bonjardim e casaram faz dois anos no verão.

Mais para sul, a caminho da estação de São Bento, a rua é um mosaico de negócios tradicionais, com tascas populares, lojas de ferramentas com montras profusas onde ainda se encontram peças para todos os usos, ourivesarias, mercearias finas com produtos de luxo (bacalhau, café, queijos e fumeiro), antigas casas de pronto a vestir, restaurantes velhos e novos, e ainda alguns desses espaços voláteis que descaracterizam as cidades de hoje. O que conta, contudo, é que esta rua é ainda um bom corredor de petiscos portuenses, com duas casas de referência nas francesinhas – A Regaleira, o seu berço há 65 anos, e o Capa na Baixa, a cervejaria contemporânea «filha» do Capa Negra. Fica ainda no Bonjardim a famosa casa das bifanas picantes, a Conga, e o Pedro dos Frangos, esse templo do grelhado, com dois prédios de portas abertas e grelhas sempre a trabalhar. Vamos pela rua abaixo, sem pretensões de classificar este ou aquele recanto como melhor, mas apenas com a missão de descobrir esta cidade dentro da cidade.

Algo está a fazer com que o sistema não consiga mostrar a ficha ténica desejada. Pedimos desculpa pelo incómodo.




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